Scarlett ficaria absurdamente feliz em contar como sua vida deveria ter sido. Ela ficaria satisfeita em contar como ingressou na melhor faculdade da cidade, alojou-se em um dormitório silencioso e ridiculamente incolor e fez amizade com sua companheira de quarto, que seria o absoluto e bruto oposto dela. Um sorriso dançaria em seus lábios quando Scarlett contasse sobre como conheceu o grande amor de sua vida, como eles começaram a namorar e como ficaram noivos. A história estaria perto do fim quando Sky contasse o quão nervosa ela estava em suas vestes brancas quando pôs os pés na igreja, no dia de seu casamento. Ela teria um casamento longo e repleto de amor, como o de seus pais havia sido. Ela assistiria os dois envelhecerem e cuidaria deles, como deve ser, e só então ela mesma viveria os anos seguintes, até o dia de sua morte, e ela partiria antes de seu marido, o que seria bom, pois ela não suportaria viver sozinha.
Era uma adorável maneira de pensar.
Só não era verdade.
Como toda adolescente, Scarlett costumava gostar de acreditar nessa versão da história, até o dia em que ela descobriu que todas as crenças que mantinha desde criança estavam completamente erradas.
----x----
O som dos pequenos saltos de seu par de botas contra o asfalto provocava um irritante estalo repetitivo que ressoava no silêncio da noite. As portas e janelas dos casebres por onde a mulher passava estavam todos trancados, silenciosos, mas ela manteve-se receosa e observava ao redor cautelosamente, temendo que alguém ousasse ataca-la apesar de a cidade estar pacata àquela hora da noite.
Seus cabelos castanho-avermelhados estavam enrolados no alto de sua cabeça, alguns teimosos fios deslizando para fora do coque com a correria. Os olhos quase totalmente negros mal piscavam a cada meio minuto, a hesitação mantendo sua respiração ofegante. Freya estava com medo, pela primeira vez em anos.
O homem que a acompanhava era pelo menos quinze centímetros mais alto que ela, e seus olhos eram de um gélido azul-claro, os cabelos negros cortados rente à cabeça, como um militar. Sua mão povoada por pequenas e brancas cicatrizes estava envolta da mulher enquanto eles corriam o máximo que seus pulmões permitiam, vez ou outra dobrando uma esquina, ou pulando uma encardida mureta.
Owen – este era seu nome – tentou dizer algo à sua companheira, talvez murmurar algumas palavras de incentivo, mas nada além se suspiros escapavam de seus lábios. A mulher olhou para trás e seu coração fez menção de atropelar sua própria língua e pular pela boca.
Ainda estavam sendo seguidos por aqueles heróis idiotas, ela pensou.
Ela, sem parar de correr, removeu a impecavelmente escondida criança das dobras de suas vestes: sua filha. Eles a queriam, mas a mãe estava decidida a nunca entregar sua filha a ninguém, e ela não mudaria de ideia a menos que conseguissem apanhá-la. Freya imaginou se o que ela sentia por sua filha poderia algum dia ser....amor?
Não, ela afastou o deprimente pensamento.
A menininha não havia aparentemente herdado os cabelos avermelhados de sua mãe ou os olhos azuis do pai, embora seus traços já lembrassem os dois em outros aspectos, como o modo como sorria ou como juntava as minúsculas sobrancelhas quando ficava irritada.
Freya estivera muito feliz com a chegada de sua primeira criança. Sendo a filha de dois dos mais conhecidos “vilões” – por assim dizer – das redondezas, ela deveria desenvolver algum poder excepcional que seria de grande utilidade para seus pais, já que os dois tinham dons também. Assassinos muito bem treinados, caçados por todo o país por uma longa ficha criminal. Owen e Freya sabiam que teriam de manter sua filha muito bem escondida de tudo isso se quisessem, mais tarde, usufruir de suas habilidades especiais.
Mas como poderiam escondê-la? Ela logo se destacaria. Ela era diferente.
Freya percebeu que seus perseguidores se aproximavam, e ela, acompanhada de seu marido, dobraram uma esquina, pulando um muro não muito alto com dificuldade por causa da criança. A correria continuou por mais alguns minutos, até Freya decidir deixar sua filha em um beco escuro, adormecida, visando voltar para busca-la assim que despistassem os heróis que os perseguiam.
Eu voltarei.
Foi o que ela disse para sua filha, depositando um singelo beijo em sua testa, enrolando-a em um cobertor. Sabendo que não deveria ficar ali por mais tempo, Freya correu.
Ela não sabia naquele dia, mas não veria sua filha novamente tão cedo.
---x---
Anos mais tarde....Um destino nada promissor parecia aguardar Scarlett. Ela não queria – ela jurava para si mesma que não queria – parecer egoísta e ingrata, mas ela parecia exatamente assim aos olhos de todas as pessoas com exceção, talvez, de seus pais.
Callum, seu pai, parecia mais jovem do que realmente era, apesar de seus cabelos desgrenhados e suéteres azul-marinho. Ele era dono de uma pequena padaria. O dinheiro que eles tiravam a cada mês era bom o suficiente para pagar um estudo de maior qualidade para sua filha mais nova.
A mãe de Scarlett, Eleanor, passava grande parte de seu tempo cuidando da casa. Ela não tinha um trabalho fixo, mas eventualmente inventava algum artesanato ou coisa parecida para vender e ganhar um dinheiro extra.
Até aos cinco anos, Scarlett mostrava-se uma criança praticamente comum. A única coisa estranha que ela costumava fazer era conversar sozinha, como se estivesse em seu próprio mundo, mas ninguém preocupou-se com isso, afinal grande parte das crianças fazia o mesmo, era como ter um amigo imaginário.
O problema começou aos seis anos.
Seu pai descobriu que havia contraído uma doença de nome desconhecido, que estava circulando pelas redondezas. Uma semana depois, tendo emagrecido doze quilos e perdido a capacidade de falar, o organismo frágil finalmente cedeu e deixou Callum ser envolvido pelas asas da morte. A tristeza recaiu sobre a família Hathaway, que agora era formada por uma viúva e dois órfãos de pai.
Eleanor não tinha mais aquele brilho no olhar que costumava ter quando contava histórias de heróis para Scarlett e seu irmão Charlie. Ela agora parecia estar ligada no piloto automático, trabalhando para alimentar os filhos, nenhum resquício de alegria habitava seu ser. Ela achava que Sky não sabia, mas ela a via chorar noite após noite, a esperança se partindo em pedaços lentamente, como uma flor que murcha com o passar do tempo. Scarlett ainda era apenas uma criança, mas ela não suportava ver as forçar de sua mãe encolhendo cada vez mais.
E foi aí que Eleanor percebeu que algo estava errado.
Em uma noite, ela pôde ver seu marido falecido e até tocá-lo rapidamente, mesmo que por apenas alguns breves segundos. Mas como poderia? Ele estava morto. Ele havia partido diante de seus olhos, ela o havia visto por ela mesma em seu leito de morte. Então como...?
Parada diante da porta, a criança ofegava sentada no gelado piso negro, as mãos envolta de seu inseparável ursinho de pelúcia, os cabelos castanho-escuro caídos pelos ombros enquanto seus pulmões trabalhavam com dificuldade.
– Sky...? – a mulher sussurrou. – Sky!
Rapidamente, a mãe a levou ao médico, pensando que ela poderia ter adquirido a doença de seu falecido pai, mas não era o caso, aparentemente, então eles deixaram passar daquela vez, embora Eleanor tenha mantido um olho nela desde aquele dia.
Quando Scarlett completou dez anos, Charlie, que tinha treze na época, jurou de pés juntos que havia visto uma cobra em seu quarto, aterrorizado, mas quando sua mãe foi averiguar, não havia nada lá, apenas Scarlett sentada em sua cama, balançando os pés a um palmo do chão. Ela tossia repetidamente, provocando a preocupação absoluta de sua mãe e seu irmão, mas voltou ao normal pouco depois.
O terceiro incidente foi assim que ela completou quinze anos, na escola. Ela se metera em uma briga, e a garota com quem Sky brigara jurava ter queimado o braço por causa de Scarlett, que teria de alguma maneira lançado fogo nela. Aquilo era absurdo. A menina acusou Sky de ser uma mutante, mas ela negou, pois aquilo era impossível, ela era filha de dois humanos e jamais fora submetida a nenhum teste científico. Como poderia?
Mas ninguém quis escutá-la. Não aceitariam “aberrações” naquele instituto. Eram conhecidos pela “pureza de raça” administrada na instituição, apenas humanos poderiam frequentar a escola, portanto, Scarlett foi expulsa.
Ela nunca estivera tão irritada em toda sua vida, exceto talvez, quando perdera seu pai. Chutando pedras, Sky voltou para casa a pé.
Por que sua vida tinha de ser tão difícil? Por que ela não poderia apenas viver como as garotas de sua idade, fazer amizade, sair?
Talvez você seja mesmo uma aberração. – ela pensou consigo mesma.
--x--
As janelas de casa estavam fechadas, mas a porta estava inclinada em suas dobradiças e aberta para o lado de dentro, o que alarmou os sentidos de Sky ao máximo. Ouvindo vozes, ela permaneceu escondida.
–
Eu só vou perguntar mais uma vez. – disse uma voz feminina, sibilante como a língua de uma cobra. –
Onde ela está?–
Eu... eu não sei do que você está falando. – Era a voz de sua mãe, um choramingar baixo cheio de dor.
Considerando entrar lá, ela imaginou se eles teriam machucado sua mãe. Estava pronta para entrar quando escutou a mesma voz feminina de antes:
–
É claro que sabe! – a mulher gritou –
Você roubou a minha filha! Sabe quanto tempo demorei para encontrá-la aqui? Quinze anos!Scarlett pausou.
Minha filha?–
Se não vai dizer – a mulher sibilou –
vou descobrir por mim mesma. Acho que você não é mais necessária.Sky saltou para dentro mais rápido do que achou que conseguiria, encontrando sua mãe sentada no chão, seu braço sangrando.
– Scarlett...O que você...? – ela tentou fracamente.
–
Scarlett? – a voz de antes questionou.
Foi então que ela viu a quem a voz pertencia. Havia uma mulher, não muito alta, os olhos ameaçadoramente vidrados em Sky e Eleanor. Os cabelos eram vermelhos e encaracolados, os olhos eram escuros, e sua pele era clara como a de Sky. Com exceção dos cabelos, ela carregava as mesmas feições de Scarlett.
– Quem... – tentou a garota, a voz falha.
– Scarlett? – interrompeu a mulher – Você ousou dar um nome à ela?
– Do que você está falando? Quem é você? – perguntou Sky.
Os olhos da mulher viraram-se para ela, de repente calor se expandindo neles. Mas não era um olhar caloroso, amigável. Era um olhar que dizia perigo! Alta voltagem.
– O seu nome não é Scarlett, é Arabella. Eu sou a sua mãe biológica. – disse, simplesmente – Ela roubou você de mim.
– Eu não roubei nada... – defendeu-se Eleanor, fracamente.
– É claro que roubou! – exclamou Freya, fazendo Eleanor tremer. Scarlett não sabia mais no que acreditar. Ela olhava de uma para a outra sem entender. – Eu voltei por ela! Eu a tenho procurado por muito tempo, enquanto você a tem mantido aqui, deixando-a acreditar que é sua filha, uma mera humana...
– Do... do que você está falando? – perguntou Sky.
– Você não contou à ela não é mesmo? – Freya estudou Eleanor, então voltou-se para Scarlett – Ela não é sua mãe. Eu sou, e eu estou aqui para levar você comigo, eu...
– Eu não vou a lugar algum com você!
Freya chegou mais perto dela.
– O que disse?
Scarlett recuou um passo, as mãos suando frio.
– Você é minha filha, – disse a mulher, começando a ficar visivelmente irritada – você nunca, nunca mesmo fez algo diferente acontecer? Algo que um humano comum não teria conseguido fazer? – Observando a expressão que entregava Scarlett, Freya sorriu – Ah, eu sabia. Você é como eu e seu pai. Só precisamos treinar você, e poderá ser uma grande...
– NÃO! – Sky gritou, para seu próprio espanto. Ela correu para fora, onde agora chovia, empurrando a mulher que se dizia sua mãe biológica, e teve uma ideia. Ela sabia que era loucura, mas tinha que tentar...
Freya se aproximava. Ela era muito mais forte, rápida, e provavelmente inteligente do que Sky, mas ela não era tão jovem e astuta quanto.
A garota forçou sua mente a imaginar um penhasco atrás de si, onde Freya passaria, e para sua surpresa, sua mãe biológica hesitou, como se estivesse vendo a imagem que Scarlett queria.
Ela estava vendo.
A própria Sky não poderia acreditar no que estava fazendo até perceber que deveria aproveitar e correr enquanto a mulher hesitava. Ela tentou andar, mas parecia como se seus pés estivessem imersos em cimento fresco, ela não pôde se mover.
Então, tudo ficou escuro, e Sky se deixou engolir pelas sombras, perdendo a consciência.
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